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Silvina Rodrigues Lopes. A fúria do pensamento por João Oliveira Duarte

Escrito em 12 de maio de 2021

Silvina Rodrigues Lopes. A fúria do pensamento por João Oliveira Duarte

Conhecida pela persistente interrogação sobre a literatura, Silvina Rodrigues Lopes apresenta-nos agora um conjunto de ensaios onde a tonalidade política é bastante mais vincada.

 

Durante muitos anos professora de teoria de literatura na Universidade Nova de Lisboa, Silvina Rodrigues Lopes é um dos mais bem escondidos segredos da academia portuguesa. O país, como se sabe, é fraco de pensamento, sem tradição filosófica, sem filósofos – não conta, claro, o estrago que uma clique de lunáticos que se autointitula “filosofia portuguesa” tenta fazer a certos poetas e prosadores. Os poucos filósofos que existem (Filomena Molder, José Gil, Bragança de Miranda e pouco mais), isolados, tantas vezes mais falados que lidos, muitas vezes só conseguem chegar ao espaço público se preencherem o critério, ditado por um narcisismo primário de pequeno país periférico que não conta para nada, que consiste em “pensar Portugal” – uma outra dimensão desse narcisismo primário são os nossos cosmopolitas de pacote que se julgam em Nova Iorque. Há, certamente, o mistério Maria Filomena Molder, que conseguiu permanecer sempre inactual tendo ao mesmo tempo bastante visibilidade, tal como há o equívoco José Gil, cuja fama se deve a um conhecido livro que em nada afectou o rigor com que efectua as suas análises, ou Eduardo Lourenço, que mesmo transformado em pensador oficial continuou sempre o seu questionamento singular, irredutível. A estes teremos que juntar Silvina Rodrigues Lopes. São os nossos mestres num tempo demasiado cheio de si próprio para reconhecer a outro a primeira palavra, são aqueles com quem pensamos, aqueles que, dentro e fora da academia, transportam uma palavra nova, uma ideia ainda não pensada, um ponto de vista inaudito – o contrário do professor público, que transporta a voz da autoridade.

O relativo desconhecimento de Silvina Rodrigues Lopes, o segredo partilhado por antigos alunos ou leitores dos seus livros, é facilmente perceptível se olharmos para o conjunto de ensaios presente em “O Nascer do Mundo nas suas Passagens”. Antes, no entanto, é preciso dizer o seguinte: vinda dos estudos literários, área que há umas décadas era bastante dinâmica mas que hoje se encontra paralisada, Silvina Rodrigues Lopes atesta do fulgor que a literatura pode ter, fulgor que felizmente está além de qualquer discurso humanista, cordato e a transbordar de bons sentimentos, ou além do circuito publicitário com que grande parte das editoras se diverte.
E uma parte da razão pela qual Silvina Rodrigues Lopes permanece arredada do discurso público – recato sem dúvida pretendido – reside nessa forma violenta, agressiva e polémica, de colocar as questões, num pensamento insubmisso que não concede nada ao seu tempo. A violência, a polémica, não vêem de palavras violentas, nem de tomar parte das questões do tempo, como acreditam os néscios, mas de uma recusa sem cedências que está inscrita na própria forma de colocar os problemas.

Contrariamente a uma linguagem pública e publicada que faz dos bons sentimentos a finalidade da palavra, o pensamento nasce muitas vezes daquilo que, para a razão mediática, é um escândalo: um ódio salutar a tudo quanto aprisiona, a toda a universalidade vazia, seja esta a razão ou o Homem, a toda a origem, a todas as raízes. É o intolerável enquanto modo de percepção (“nunca o mundo funcionou tão mal”, afirma, citando Ponge), é ver no seu tempo qualquer coisa que não se pode mais suportar e que, exactamente por causa disso, obriga a pensar – mas nada há aqui de ressentimento e este pensamento é especialmente alegre, é a alegria enquanto modo superior de pensamento, de afirmação do contigente. Neste conjunto de ensaios que são políticos sem cair na tagarelice, o intolerável encontra-se espalhado por toda a superfície do globo, cobre o mundo todo e arrasta-nos para o seu buraco negro: é a publicidade, o consumo, a redução da linguagem a um modo único (um monolinguismo, para usar um conceito de um pensador que Silvina Rodrigues Lopes conhece bastante bem), é esta mutação antropológica que a tecnociência produz de forma cada vez mais acelerada, sem nunca Silvina Rodrigues Lopes caia na nostalgia conservadora de um qualquer humanismo.

“A publicidade seria sobretudo a construção de figuras de coisas «novas» ou em que se descobrem «novas» qualidades, construção que se torna convincente por processos retóricos assentes em última instância na impossibilidade de distinção em termos positivos do que é novo, outro, e do que é consumível, novidade, mercadoria definida pelo equivalente geral”

A publicidade enquanto pensamento total não conhece nada de exterior: não há nada que ela não consiga transformar em mercadoria, novo algum que ela não consiga reduzir a novidade – já Gilles Deleuze, conhecido filósofo francês, via na publicidade uma das misérias do nosso tempo. Mas intolerável, para Silvina Rodrigues Lopes, é a lógica consumista, que cria um sujeito enquanto “disponibilidade total permanente”.

“Enquanto o consumo de bens necessários para continuar a viver conduz à saciedade, permitindo ao indivíduo o despreendimento de si (atenção ao resto do mundo), o consumo inútil, o puro gasto por autocomprazimento tende a traduzir-se em poder simbólico, em dependência de mecanismos instalados por esse consumo e/ou em impulso voraz automático («ser tudo de todas as maneiras») que tende a reduzir os indivíduos à função predadora”

É a lógica do “mais-prazer-mais-poder-mais-destruição” que o capitalismo criou, no qual o homem se fecha “sobre si mesmo como se fosse uma cela onde tudo é suposto passar-se e onde nada acontece”: é o sujeito reduzido à vontade, mas a uma vontade de poder que é, na realidade, uma vontade de nada, um buraco negro narcisista que só conhece “o auto-comando dos indivíduos” e a imediatez da sua vontade. É preciso não confundir, no entanto, este posicionamento de Silvina Rodriges Lopes relativamente ao consumo nem com pontos de vista moralistas nem com uma má-consciência onde a critica ao consumo esconde a defesa do privilégio e um autocomprazimento. A crítica, aqui, é política, na medida em que vê no consumo uma mutação antropológica, não se limitando à conhecida máxima de Lampedusa – segundo a qual é preciso que tudo mude para que tudo permaneça igual – que surge no frontispício de uma tendência ecologista de uma certa elite portuguesa e não só.

Mas intolerável, para Silvina Rodrigues Lopes, é a miséria que o capitalismo nos impõe. Miséria económica, sem dúvida – mas não só –, miséria de pensamento que nos quer convencer de que “nenhuma mudança é possível, só é possível administrar melhor”, miséria que se deixa ler todos os dias na forma como o “múltiplo singular” das línguas é substituído por uma única forma de escrever e falar (basta ligar a televisão ou abrir um jornal), por um pensamento onde tudo é útil, até a inutilidade da arte – que é útil ora como mercadoria ora como meio de formação de cidadãos dóceis. É esta miséria que só tem futuro mas não tem porvir – o porvir é da ordem do acontecimento que não se pode possuir, da errância – que, para Silvina Rodrigues Lopes, é intolerável, é contra ela que se pensa, é ela que obriga o pensamento a uma recusa sem limites e sem qualquer negociação.

“Alegrar-se com o que vem (desconhecido), não se deixar paralisar pelo medo, romper o círculo do idêntico: tais são os movimentos que constituem a disponibilidade para o mundo, a aptidão para fazer sentido contra o sentido feito, a doxa”
É contra esta miséria que se pensa e todos estes ensaios, que vão da literatura ao trabalho ou ao ensino, dizem que apenas se começa a pensar no preciso momento em que se recusa, em que se vai em direcção ao “espanto do encontro” – que é uma outra forma de pensar o mundo além de qualquer posse, de qualquer funcionalidade, qualquer previsão ou economia. Daí que Silvina Rodrigues Lopes encontre a arte como modo de retirar ao mundo qualquer fundamento, qualquer imposição de uma língua única – ela é errância, “paciência do estudo”, sem qualquer “finalidade unificadora”. É preciso recusar, em primeiro lugar, a sua transformação em mercadoria, isto é, em publicidade (e há tanta arte actualmente que não consegue essa sobriedade, demasiada deslumbrada com a sua própria espectacularidade). Mas é também preciso recusar o par útil/inútil no qual o filisteu cultivado – o conceito é de Hannah Arendt – insiste, subordinando a arte à educação (o belo é sempre bom), não sabendo sequer que a literatura é o “direito a dizer tudo, dizer até o vazio, o segredo absoluto”.

Mostrando a possibilidade do encontro com aquilo que recusa subordinar-se à comunicação, a arte impõe a reinvenção da linguagem: é preciso descobrir uma forma, uma linguagem, de nos aproximarmos da arte, de estarmos à altura do encontro – mas sem qualquer segurança, sem qualquer fundamento, o que não implica a ausência de rigor ou a possibilidade de dizer tudo. É a “paciência do estudo” mas é, também, o “pensar plural”.

“O pensar plural, inacabável, diz respeito a qualquer um, na medida em que, como ser falante, ele se constitui uma interioridade que acolhe ao que vem do mundo a partir de um imperativo de justiça anterior ao conhecimento, um imperativo imanente à socialidade sem fundamento exterior e sempre ameaçada pela objectivação, pela economia como cálculo das vidas. Trata-se da imanência de devir-outro, de viver sem modelo, viver com os outros”

É a nossa forma particular de miséria, sem palavras que assegurem o caminho para o outro, sem fundamento a que se possa recorrer, sem modelo (de linguagem, de vida) – mas é também a alegria, a “impossível alegria que suporta o mundo e faz nascer uma expectativa sem objecto, e de quem, não esperando nada, sente que tudo se lhe dirige”.

 

João Oliveira Duarte, iOnline, 12 Maio, 2021

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