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FALEMOS DE CARTAS, José Tolentino Mendonça, Revista E do Semanário Express

Escrito em 17 de outubro de 2020

FALEMOS DE CARTAS, José Tolentino Mendonça, Revista E do Semanário Express

NA VERDADE, UMA CARTA NÃO SE RESUME À MENSAGEM ESCRITA, E ISSO É TAMBÉM A SUA RIQUEZA. TUDO NELA É MENSAGEM

 

Numa das mais fascinantes cartas da literatura portuguesa, aquela que Fernando Pessoa escreve a Adolfo Casais Monteiro explicando a génese dos seus heterónimos, há duas informações marginais que certamente não passam despercebidas a quem valoriza a prática epistolar. Pessoa começa por desculpar-se por não ter à mão um papel melhor do que aquele de cópia em que escreve ao seu correspondente. E mais à frente, num parêntesis autoirónico sobre a forma como o seu discurso se deixava continuamente tentar por derivas, confessa também: “Em eu começando a falar — e escrever à máquina é para mim falar —, custa-me a encontrar o travão.” Ficamos assim a saber que não se tratava de uma carta manuscrita.


São, é claro, informações de margem que se prendem com o lado material das cartas, mas que não deixam, contudo, de ter a sua importância. Na verdade, uma carta não se resume à mensagem escrita, e isso é também a sua riqueza. Tudo nela é mensagem.

Uma vez, numa feira de arte em Madrid, numa banca que exibia aquele tipo de materiais transitórios que se convencionou chamar “efémera” (e eram ali, na sua maioria, velhos catálogos, cartazes, folhas de sala, prospetos e cartas), o vendedor fezme ver o que ele classificava como a obra mais pequena de Lourdes Castro. Dentro de uma carta a um seu amigo holandês, a artista havia colocado um outro envelope, de formato mínimo, onde escreveu a palavra Paris. E no interior colocou a folha miniatural de uma árvore. Fiquei a pensar como uma carta se desdobra. Como se organiza em planos múltiplos de leitura. Como é mais extensa do que se pode supor. E como um envelope
constitui uma jangada que não se desloca em sentido único e nunca transporta uma coisa só.

As edições do Saguão acabam de editar um dos livros mais bonitos e cuidados desta rentrée: tem por título “Poemas Envelope” e é da poeta norte-americana Emily Dickinson (1830-1886). O título “Poemas Envelope” refere-se não tanto ao facto de estes poemas terem sido escritos em envelopes já usados, quanto a dependerem na sua natureza do suporte precário em que foram escritos. Como se diz na nota de tradução que acompanha o volume, Dickinson abria
cuidadosamente os envelopes que recebia e cortava-os “em formas diferentes, num gesto económico de aproveitamento do papel, mas que visava também criar uma forma à qual a escrita teria de responder”. De facto, como se vê nas imagens que o volume reproduz, “a direção, o corte do verso, a separação entre palavras, a contenção, as variantes, são guiadas pela forma do papel”. Num fragmento de envelope que se parece com a copa de um cálice, Emily Dickinson gravou estes versos: “Há quem/ seja fútil/ de propósito/ e/ profundo/ por/ mero acaso.” Num outro, semelhante a minúsculo triângulo, escreveu:
“Uma nota de/ um pássaro/ vale mais do que/ um milhão de palavras// Uma bainha/ requer-possui-contém/ uma única/
espada.”

Nós dizemos, talvez demasiado apressadamente, ter entrado na era da comunicação. Não raro acontece, porém, com a instantaneidade do digital (e-mail, SMS, WhatsApp, o que seja) aquele fenómeno que se dá quando avizinhamos demasiado o nosso rosto de um objeto: deixamos de o ver ou vemos apenas uma massa indecifrável e confusa. A carta tem um distanciamento (espacial, temporal, reflexivo, emocional...) que os suportes digitais eliminaram. E permite uma forma de intimidade e memória que esses meios não alcançam (ou ainda não alcançam). Ainda temos muito que aprender com as
cartas. Hoje comunicamos mais, mas corremos o risco de não comunicar melhor.

José Tolentino Mendonça, Revista E, Semanário Expresso, 17 Outubro, 2020, link

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